terça-feira, 30 de setembro de 2014

SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO

A bucólica quietude dessa noite de Agosto era apenas quebrada pelo agradável restolhar das palmeiras, num murmúrio sussurrante, açoitadas levemente pela brisa ligeira, quente e húmida, desses dias e noites sufocantes verão que se fazem sentir no Algarve durante os meses de verão. Mercê desse facto decidi pegar no carro e guiar até uma das praias mais isoladas das zonas clássicas de veraneio, cerca das 10 da noite com a finalidade de me refrescar nas águas mornas deste atlântico calmo e pacato. Os odores da poesia, romantismo, amor e paixão pairavam ainda no ar enquanto que se podia ver na areia ainda quente as marcas dos corpos deixados pelos casais de namorados e amantes apaixonados que aí tinham permanecido até há cerca de 2 horas antes. Todos estes sentimentos aliados numa conjura de exorcização, tentaram apoderar-se do meu corpo dolente e entorpecido pela profundidade do sentimento nele imbuído, tornando-o receptivo a uma inoculação para a qual inicialmente não estava preparado. Por isso não tentei resistir, antes pelo contrário, abandonei-me de livre e espontânea vontade, ao seu total domínio e controle, deixando-me envolver nesse manto diáfano de sensualidade e erotismo, como e fosse uma dádiva divina, que por uma razão ou outra devido à minha hipersensibilidade me escolheu como recipiente para ser o fiel depositário desta mescla de sentimentos e emoções deixados no ar como fogos fátuos. Deitei-me na areia, fechei os olhos e libertando a mente, deixei-me transportar por associação de ideias, para um passado não muito longínquo de situações escaldantes como resultado de paixões tórridas, passadas em praias de outros oceanos e paraísos tropicais que começaram a aflorar à minha mente como uma projecção de diapositivos. Repentinamente as forças abandonaram-me e fui imbuído por um estado letárgico, que combinados com uma catadupa de vários sentimentos propiciaram à meditação e ao desejo repentino de voltar a reviver a curto prazo situações aventurosas do mesmo estilo. É, nesta simbiose de inspiração e reflexão idílica, onde tudo se conjuga para a obtenção de um clímax perfeito e harmónico, que os meus sentidos aguçados começaram a desvendar. Apesar da hora tardia ainda consigo inalar o odor dos protectores solares que impregnaram a areia durante a tarde. Enquanto o meu subconsciente metafísico divagava num transe de recolhimento sabático numa nuvem de cristal, e se recusava terminantemente a reincarnar no meu consciente físico, sou abalado e possuído por uma mistura de convulsões e de sentimentos contraditórios como se de um cocktail se tratasse, onde sentimentos de vária ordem se digladiavam numa contenda de vida ou morte. Decidi não intervir nem arbitrar esse diferendo, afim de saber qual o sentimento prevalente que sairia vencedor dessa batalha selvagem sem regras ou fronteiras. E, enquanto tudo isto acontecia, ia evitando e protelando o regresso à realidade, pois aí, apenas existe nesta altura muita calma, paz, distanciamento e contemplação. Na solidão desta praia, o cheiro característico das algas marinhas e da maresia, entravam-me despudoradamente pelas narinas, criando em mim, por breves instantes um sentimento de invencibilidade, de omnipotência e controle sobre todo o Universo. Tirando partido momentâneo desses estranhos poderes que me foram concedidos por algum dos Deuses de outra galáxias mais poderosas, ordenei que o meu mundo, respeitosa e servilmente se ajoelhasse como um ser mesquinho a meus pés, numa atitude de subserviência e de vassalagem, pedindo-me perdão por continuar a permitir albergar no seu seio tanta injustiça social. É em solidão, que os ideais se constroem e os sonhos se arquitectam, os projectos de vida e objectivos se definem, crimes perfeitos se congeminam maquinam dentro de mentes pérfidas e maquiavélicas. É na solidão, que visionamos com esperança se os nossos sonhos e objectivos existenciais se convertam em realidades palpáveis, mas que infelizmente quando transportados para a vida real, muitos deles se desfazem rapidamente como o fumo, e se desmoronam como baralhos de cartas ou peças de um dominó. Quando isso acontece, o desespero e a frustração criam em nós uma sensação de estranha inutilidade que nos pode levar a duas situações: reciclagem ou despedimento. É também, esta solidão, que propicia ao recolhimento e à meditação sobre o nosso passado, presente e futuro, e, aos reajustamentos que temos de fazer na nossa vida com a finalidade de lhe proporcionar mais qualidade em todas as suas vertentes. E, enquanto todos estes acontecimentos que se propagavam à velocidade da luz, atravessavam as estruturas do meu ser, tive um pressentimento de que não me encontrava só, e, na penumbra difusa da noite, tentei perscrutar com o meu olhar a confirmação dessa suspeita. De repente, descortinei um esquálido e rafeiro cão castanho de pêlo gasto e aparentemente morto de fome, a vagabundear sem destino por essa praia deserta, farejando e esgravatando na areia aqui e além numa tentativa desesperada de encontrar algo que lhe mitigasse a sua insaciável fome. Presumi sem grande margem de erro que a mesma devia durar há já alguns dias. E foi nesse cão sarnento, cadavérico e abandonado que senti inexplicavelmente uma necessidade de com ele comunicar, pois em certos aspectos revi nele certos aspectos da minha própria existência. Senti para com esse cão desprotegido e solitário uma certa identificação de solidariedade que me comoveu, e uma fraternal simpatia por esse animal vadio que solitariamente e sem a minha prévia permissão deambulava pelos meus domínios, sem ter ninguém que o afagasse, e lhe proporcionasse uma carícia mais intimista, que lhe falasse, o chamasse pelo nome e lhe desse um pouco de atenção. Tentei alicia-lo, ganhando-lhe a confiança, afim de tentar que ele se aproximasse de mim, e rapidamente enumerei uma dezena de nomes daqueles que habitualmente se costumam chamar aos cães, contudo pareceu-me que não acertava em nenhum, pois ele permanecia impassível e a rosnar ameaçadoramente, mantendo uma postura desconfiada e pronto a debandar a qualquer movimento mais brusco da minha parte. Neste hiato de avaliação recíproca, o meu inesperado visitante devia ter decidido que eu não constituía uma ameaça, e, isso encorajou-o a progredir encetando mais alguns tímidos passos na minha direcção, talvez surpreendido com a minha receptividade e desejo de entabular uma conversação, que tristemente iria terminar num monólogo. Depois de persistentemente me contemplar com o seu olhar vidrado, mortiço e remeloso, ajudado com mais alguns assobios e nomes atirados à toa, que foram determinantes para o incentivar, lá se aproximou dos meus pés farejando-os e deixando de rosnar no tom ameaçador que inicialmente tinha adoptado. Eu, também enchendo-me de coragem, consegui passar-lhe a mão pelo pêlo desfiado e ralo afagando-lhe o lombo delicadamente com o mesmo sentimento, de amor e carinho que teria usado para sensualmente acariciar um amante. Nesse momento senti que todo ele estava a ser abalado por um estertor rápido e convulsivo, notando que os seus olhos mortiços se tornam inexplicavelmente brilhantes e húmidos como se tivesse sido atingido um orgasmo inesperado, resultante de um sonho ou fantasia erótica. Após, estes preliminares de cumplicidade ele ou ela, pois o sexo manteve-se para mim indefinido até à hora da despedida, deitou-se dócil e meigamente a meus pés e abanou a cauda à laia de cumprimento como para me dizer que as apresentações tinham sido feitas. Agora, a esta curta distância, consigo distintamente enxergar quão devastadora é a sua magreza, com o ossos a quererem romper-lhe a pele descarnada, cheia de postulas e as orelhas de carraças. Neste interlúdio de respeitosos e recíprocos silêncios e de uma contemplação mútua, como se fossemos dois adversários que se miram e avaliavam antes de entrarem em combate, confessei-lhe algumas as minhas preocupações e resoluções que decidi implementar a curto prazo para apimentar a minha vida, enquanto que ele ia abanando a cauda em sinal de assentimento e cumplicidade. De novo me embrenhei nos meus pensamento enquanto as vagas mansas e calmas que refulgiam pelos raios da lua, me lambiam docilmente os meus pés como um animal dedicado acaricia o seu dono. O vai e vem monótono e ritmado do enrolar e desenrolar das ondas que continuavam a rebentar suavemente, desfazendo-se em milhões de flocos de branca espuma, desenhavam contornos fluorescentes e misteriosamente amorfos na areia branca da praia como se de hieróglifos indecifráveis se tratassem. De quando em vez, os salpicos salgados fustigavam a minha pele tisnada pelo sol, fazendo-me regressar à realidade de que o tempo tinha passado e que já era muito tarde. Perto do local onde me encontrava os brancos caranguejos corriam apressados no seu andar desajeitado e gingão de regresso aos seus buracos estreitos e profundos escavados na areia, ocultando dos meus olhos a sequência extraordinária do seu ciclo de vida. Reparo agora com triste mágoa que nunca os meus olhos se tinham elevado tão alto para uma apreciação condigna de certos mistérios da natureza, tão perfeita e equilibrada em todo os seus mínimos detalhes e pormenores. Ao longe...lá muito ao longe.... pequenas luzes ponteavam no horizonte negro como se fossem pirilampos no seu voo errático e descontrolado, mas não,.....eram pescadores que nos seus pequenos botes que com os candeeiros pendurados na popa das suas pequenas embarcações nos criavam essa ilusão tentando na sua faina nocturna ganhar o pão para o dia seguinte. Após uns minutos de descanso merecido o meu também solitário visitante e interlocutor, levantou-se vagarosa e pachorrentamente, lambeu-me a mão, rosnou, desta vez amigavelmente e abanando a cauda desajeitadamente à laia de despedida ou de sentimento de gratidão pela atenção que lhe dispensei, afastou-se titubeando em direcção a uns rochedos perto, e eu fiquei a olhá-lo enquanto ele se esfumava por entre as sombras da noite. Levantei-me vagarosamente e comecei a caminhar pela praia deserta deixando as minhas pegadas marcadas indelevelmente na areia fina que a maré quando enchesse acabaria por apagar. O sol há longas horas tinha deixado de brilhar no horizonte e descera afogueado depois de um dia de trabalho mergulhando para se refrescar na linha infindável do horizonte. Um céu estrelado e uma lua esplendorosa e refulgente como diamantes prendiam a minha admiração de como o Universo é realmente uma obra de arte. O dia tinha dado lugar à noite substituído o envergonhado sol que se retirou para aquecer os antípodas. A vida parou naquela praia deserta, as luzes dos pequenos barcos de pesca, permaneciam brilhantes e a reverberar quando os raios da lua nelas incidiam. As ondas do mar mantinham a sua ondulação calma, ritmada, imutável e monotonamente indiferente ao ruir e à construção de sonhos e promessas de amores de verão feitas durante o dia naquela praia isolada e receptiva a que se curtissem e consumassem paixões nas dunas mais afastadas. E, enquanto me afastava, tal como o cão tinha feito momentos antes, deixei enterradas na areia e nas profundezas do mar, todas as visões que pela minha mente desfilaram, e, apenas as pegadas deixadas pelas minhas sandálias e pelas patas trémulas do cão que ficaram gravadas na areia como prova infindável da nossa tristeza, poderiam atestar que uma realidade por ali tinha passado. Vivemos num mundo insensível e implacável, que segue os seus movimentos de rotação e translação há milhões de anos imperturbavelmente sem se preocupar ou comover com os problemas da humanidade, castigando essa mesma, com terramotos, tufões, ciclones, maremotos e vulcões quando sente que os seus inquilinos estão a danificar o habitat que para eles foi criado como um paraíso e que eles estão a tornar num inferno. Vilamoura, 2004

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