sexta-feira, 22 de abril de 2011

A ALDEIA

                                             

O dia nasceu cinzento e com um frio cortante que gelava os ossos. O céu plúmbeo que ameaçava chuva a todo o momento e o vento vindo das serranias fustigava impiedosamente aquela aldeia perdida nos confins da região Beirã. O pequeno e esparso povoado, quase que desertificada, pelo abandono progressivo dos seus moradores mais jovens, que procuraram emprego e vida nas cidades costeiras mais cosmopolitas e industrializadas, parecia um asilo de velhos geriatricos mal nutridos esperando pacientemente a morte. Os poucos cães ainda vivos deambulavam esqueléticos pelo empedrado granítico das ruas esburacadas. As galinhas agitavam-se nas capoeiras dos quintais cacarejando na expectativa de receberem a sua ração matinal. A aldeia tinha acordado para mais um dia igual a tantos outros onde a monotonia e rotina apenas era quebrada quando os lobos ou raposas esfomeados atacavam a criação menos protegida ou as ovelhas nos cercados. Nessa manhã os dois pequenos sinos argênteos do campanário da pequena igreja começaram a tocar uma das três habituais sinfonias, rebate por causa do fogo, chamamento dos fieis para a missa e a morte de algum dos habitantes, porquanto o quarto toque de casamentos e baptizados já não se ouvia há mais de 30 anos. O pároco daquele pequeno burgo perdido nos contrafortes agrestes da serra tinha cerca de 70 anos, e, ao longo dos mesmos, casou, baptizou e enterrou muitas das “ovelhas” do seu rebanho que religiosamente atendiam os seus sermões epistolares dominicais. Confessou, penitenciou, absolveu, crismou, abençoou, baptizou, casou e deu a extrema-unção a muitos que já partiram para outras terras, e aos poucos que ainda restam e resistem à mudança inexorável dos tempos e da tecnologia. A luz ainda não chegou e a água, só na secular fonte que a jorra pura e cristalina na pequena e única praça do centro da vila. È nesse local onde algum pequeno comercio artesanal e tradicional ainda sobrevive contrabalançando o pouco dinheiro que recebe das pequenas reformas para pagamento dos géneros básicos para alimentação e das longas listas de dividas que se vão acumulando ao longo dos meses e que só são reduzidos parcialmente com o subsidio de férias ou de Natal.
O Padre Alberto sempre viveu numa pequena casa contígua à velha igreja sendo assessorado pelo seu velho acólito e amigo Sr. Felisberto há mais de 40 anos. Durante as horas de ócio, ambos frequentavam a taberna do Sr. Raul mas conhecido pelo “Fininho” onde bebiam os seus copitos de três do bom “tintol” e jogavam a sueca de parceria, pois já conheciam todos os truques e a sinalética de forma telepática transmitiam um ao outro os “trunfos” e os ases que tinham, ou as “manilhas secas”. Estavam tão bem sincronizados, que salvo raras excepções ganhavam sempre “esfolando” os adversários e bebendo de borla, pois a parceria perdedora teria que pagar a despesa. Nessa manhã invernosa de Janeiro a centena e meia de habitantes foi acordada pelo som matutino e não habitual dos velhos sinos, que de uma forma lúgubre anunciavam mais uma morte na aldeia. As pessoas começaram a sair de casa e dirigindo-se para o átrio da igreja iam perguntando uns aos outros se sabiam qual o nome do falecido. Passado uns minutos o Padre Alberto saindo da sacristia anunciou ao povo que o pastor Policarpo tinha sido encontrado essa madrugada morto e enregelado na soleira da porta do seu modesto e isolado casebre a cerca de 1 km da aldeia onde vivia sozinho por ser um celibatário confesso, por um caçador que ouviu um cão a uivar de uma forma sinistra ao lado do infortunado pastor. O Sr. Policarpo era ostracizado como a ovelha ranhosa daquela pequena comunidade, por várias razões que o povo veementemente condenava. A principal, era pelo seu afastamento da religião, ódio aos “padrecas”, e por se dizer há muitos anos que era Ateu. Também constava que era filho ilegítimo do padre Felisberto o predecessor do cónego Alberto. Este, era um jovem sedutor e bem-falante vindo do seminário do Porto com a missão de desempenhar as suas funções de pároco naquela aldeola perdida nos contrafortes da serra. Corria nessa altura o boato de que este usava o confessionário para manchar a honra das virgens locais de várias formas e feitios, preferindo a sodomia a todas as restantes. O pastor Policarpo sendo filho de pai incógnito carregou com a ignominia da desonra pela vida fora, pois a sua mãe nunca lhe revelou quem era o seu verdadeiro pai e esse recalcamento de infância, fez com que ele abjurasse de qualquer religião bem como dos seus dignitários. A segunda, por se constar que mantinha relações sexuais com algumas ovelhas do seu rebanho, as quais nunca vendia e que carinhosamente chamava pelo nome próprio quando as queria admoestar, acarinhar ou louvar. O vigário Alberto já tinha informado a GNR pelo seu telemóvel da ocorrência, afim de que os trâmites legais fossem cumpridos e que o Delegado de Saúde Regional viesse a fim de determinar a causa da morte do pastor Policarpo, que era mais do que óbvia: velhice, solidão, desnutrição e finalmente uma broncopneumonia, pois a sua tosse já o anunciava a mais de 300 m da aldeia, quando a esta se deslocava para as suas parcas compras na mercearia local ou para beber uns copitos na taberna. O cónego Alberto aproveitou ter á sua frente quase a aldeia inteira para anunciar que o corpo do Policarpo não seria bem-vindo para o solo sagrado da igreja conspurcando-o, nem aí ser velado pelas velhas carpideiras locais em virtude da sua renuncia à existência de Deus e que o Diabo poderia dispor da sua alma como muito bem entendesse. A decisão do pároco dividiu a aldeia criando um ambiente de mau estar entre os apoiantes do padre e aqueles que divergiam da sua decisão. Os ânimos alteraram-se de tal forma que a GNR que tinha acabado de chegar no Jeep foi chamada para restabelecer a ordem e apaziguar as altercações entre os habitantes. As opiniões divergiam entre os que acusavam o Policarpo de “bestialidade” e de renegar Deus, e os outros que de uma forma misericordiosa, solidária e humanista pretendiam dar ao morto um funeral digno e prontificando-se de imediato a levar o corpo para a “Casa do Povo” para aí ser velado por todos aqueles que o desejassem fazer. Perto do meio-dia o sargento da GNR mais o cabo que o acompanhava regressaram do albergue onde vivia o pastor Policarpo e depois de lhe revistarem a casa encontraram duas coisas que os surpreenderam bastante deixando-os completamente desconcertados. A primeira foi a descoberta de uma caderneta da Caixa Geral de Depósitos com cerca de 60 mil contos (trezentos mil euros) a prazo, e a outra, a copia autenticada de um testamento feito recentemente, onde metade desse dinheiro seria legado à igreja local para a reconstrução da mesma, e o restante para a construção de um lar da terceira idade. Dizia também no testamento, que na eventualidade da sua morte, e, se ao seu corpo fosse negada a estadia na igreja que a metade do dinheiro que a esta estava destinada, seria para constituir um fundo de apoio para os mais necessitados em caso de doença, compra de medicamentos, deslocações de táxi para o centro hospitalar mais próximo ou subsídios financeiros motivados por incapacidade temporária ou permanente dos aldeões. O rebanho das ovelhas e cabras que eram cerca de duzentas seriam igualmente divididos por todos os residentes na aldeia do sexo masculino, mantendo-se a construção do lar da terceira idade para todos em geral sem excepções, mas sendo este, administrado pela Câmara Municipal da sede do Concelho juntamente com o presidente da Junta de Freguesia local. A contabilidade do lar seria feita por uma firma conceituada e as mesmas contas auditadas por uma firma internacional de créditos firmados no mercado. Estes desejos finais do defunto foram anunciados em voz alta pelo sargento da GNR no átrio da Igreja perante todos os habitantes e do padre Alberto, que ficou branco como a cal da parede e quase sem fala. Quando a autoridade se retirou no Jeep o povo foi debandando, mas todos sabiam quem eram aqueles que iriam beneficiar com as ultimas vontades do defunto. Mais de metade da aldeia ficou marcada com a Cruz de Cristo e os restantes com os Cornos de Belzebu. Nesse domingo, na missa dominical por todos atendida e do alto do seu púlpito o Sermão do Padre Alberto foi de contrição e virando a casaca de uma forma apologética e muito pragmática enalteceu a pseudo reconversão do Policarpo e a forma como decidiu compensar a Igreja pela sua ausência de todas as manifestações eclesiásticas e do seu propalado ateísmo. A voz do dinheiro acabou por falar mais alto, e a sua desculpa ou justificação para a absolvição daquela ovelha negra, baseou-se no facto de o pastor Policarpo ter deixado soma tão avultada á congregação, o que o levou a concluir que este, no final da sua vida, ter-se-ia eventualmente reconvertido à fé católica e feito as pazes com Deus. Esta sua decisão e a sua forma de o manifestar publicamente foi o acto altruísta e o reconhecimento de que tinha vivido em pecado toda a sua vida e que quando morresse se pretendia redimir entregando a sua alma a Deus em vez de a deixar com o Diabo. Quando o Padre Alberto terminou a sua prelecção gerou-se um silêncio de cortar á faca naquela pequena igreja repleta de paroquianos, e, logo de seguida, em uníssono, sem que previamente algo se tivesse combinado entre apoiantes e opositores, todos os fieis iniciaram uma tremenda pateada, com assobios condenando o sermão do pároco, coisa nunca vista ou ouvida em mais de um século. Passados alguns minutos todos se calaram simultaneamente como se fosse algo que tivesse sido previamente treinado e começaram a abandonar a igreja mesmo antes do serviço dominical ter terminado O Padre Alberto boquiaberto e constrangido no púlpito gesticulava berrando como um demente para uma audiência que de costas viradas para ele deixava a igreja de uma forma cívica, ordeira e acabrunhada pelo que tinham ouvido da boca do velho sacerdote. Mais uma vez os grupos se separaram encetando conversações entre eles. Passado algum tempo, cada grupo tinha eleito um representante para dialogarem entre si a fim de encontrarem uma plataforma de entendimento que servisse os desejos de ambas as partes. O Sr. Paulo, sapateiro e representante dos favoráveis a que o corpo ficasse na igreja local juntamente com o Sr. Alfredo, o magarefe e partidário da decisão do padre Alberto, encaminharam-se para a taberna a fim de prosseguirem as negociações num local mais calmo e longe do povo que dividido não pela causa, mas sim, pelo efeito do sermão do padre. Enquanto que o povo aguardava a pé firme no átrio da igreja o resultado das mesmas deliberações a vida do defunto era dissecada e vasculhada a pente fino por todos os presentes com conjecturas inimagináveis. Passada quase uma hora e já com um grão na asa, os dois regressaram com o veredicto final. O Sr. Paulo foi o porta-voz escolhido, e, dirigindo-se a mais de uma centena de habitantes, com a sua voz pastosa e entrecortada quebrou o silêncio anunciando aos seus conterrâneos que uma solução que satisfazia ambas as partes tinha sido encontrada, passando a enunciar o resultado da mesma.

1) Como no testamento o Sr.Policarpo não tinha deixado expressas as suas convicções religiosas quer como cristão, ateísta, agnóstico ou apóstata nem da sua intenção de conversão a qualquer das religiões conhecidas, depreendemos que não professava nenhuma, consequentemente ficou decidido que o féretro será levado para a Casa do Povo onde ficará em câmara ardente durante a noite para o velório de todos aqueles que o desejarem fazer.

2) Uma vez mais como nos seus desejos expressos em testamento não manifestou o desejo de ser sepultado no cemitério e porque se essa opção fosse considerada poderia criar algum mau estar ficou decidido que o corpo será cremado e as suas cinzas deixadas numa caixa aberta no cimo da serra para que o vento se encarregue de as espalhar pelos montes e vales daquela região que o tinha visto nascer sem honra nem dignidade e morrer da mesma forma.

3) Será feito um baixo assinado ao Episcopado para pedir a demissão imediata do padre Alberto e que enquanto a sua substituição não se processar sugerimos que todos os católicos praticantes se devem deslocar à aldeia mais próxima para assistir á missa dominical se assim o desejarem.

4) Ficou igualmente decidido que ao futuro lar da terceira idade, seja dado o nome “Lar Policarpo”

5) E que no local onde as suas cinzas forem depositadas seja erigida uma placa com o seguinte epitáfio: “Aqui jaz o pastor Policarpo benfeitor de uma comunidade que o desprezou em vida mas jamais o esquecerá depois da sua morte”.

Depois do Sr.Paulo ter terminado o seu breve discurso o povo debandou para as suas casas satisfeito pela forma cordata e sabia de como todas as sensibilidades tinham sido acauteladas e respeitadas. Nessa noite, quase todos sem excepção, apareceram na Casa do Povo para prestar a ultimas homenagem ao benemérito Pastor Policarpo que, com a sua morte trouxe a felicidade aquelas almas esquecidas do mundo e dos homens, uma vez que esta aldeia nem mesmo nos mapas mais detalhados e actualizados é reconhecida a sua existência.

Vilamoura 27-12-2007




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