segunda-feira, 29 de setembro de 2014

ADULTÉRIO

O crepúsculo descia lentamente pelo céu plúmbeo e ameaçador daquele final de tarde tipicamente Africano. Os últimos dias daquele quente e húmido verão esfumavam-se lenta e rapidamente, pois a época do cacimbo aproximava-se inexoravelmente. As últimas chuvadas faziam a sua despedida por mais 6 meses, mais parecendo que o fluido da vida se esfumava no momento de entregar o corpo ao espectro da morte. Grossos pingo de chuva começavam a cair com fúria redobrada sobre os céus daquela pequena vila perdida e encravada nos matagais densos e verdosos daquela incomensurável savana situada no planalto central deste país Africano. O vento repentinamente forte, agreste e ruidoso, fustigava sem dó nem piedade a folhagem que se ia lenta e metodicamente depenando devido á ventania implacável, que ia despindo e desnudando o arvoredo da sua impenetrável roupagem verdejante, deixando as árvores especadas como altos esqueletos a deambular sem rumo como que arrependidas e conspurcadas em penitência pelos seus pecados terrenos. A terra encharcada expelia aquele odor quente a agradável que as pessoas inalavam com prazer sensual, como se duma substância entorpecente se tratasse. As pedras da calçada da rua principal polidas e gastas, daquele burgo esquecido e anacrónico, iam se tornando cada vez mais escorregadias devido á chuva e lama que as cobria. Os pássaros voavam baixinho de regresso apressado aos seus ninhos quentes e acolhedores, levando nos seus bicos algumas minhocas e gafanhotos para alimentar as suas esfaimadas crias. Os cubos negros de basalto das poucas ruas empedradas há mais de uma centena de anos, por colonos portugueses, alcatifavam-se lenta mas progressivamente de fofas folhas que abrupta e violentamente tinham sido arrancadas aos seus progenitores. Entretanto no quarto sórdido de paredes sujas e encardidas, da única pensão daquela vila, eles amavam-se, apesar de saberem que este seu amor ilegal, clandestino, condenado pela lei dos homens e pelas de Deus, jamais morreria. Este caixeiro viajante que há anos visitava periodicamente esta vila para vender chitas, missangas e outras bugigangas aos “fubeiros” das poucas lojas de comercio misto ali existentes, tinha-se apaixonado louca e perdidamente pela mulher do já idoso administrador de posto, sendo por esta correspondido na mesma medida. Madalena, transmontana dos três costados, era uma forte e entroncada morena de bonitos olhos verdes e longas pestanas, de seios grandes e firmes, pernas roliças, ancas bem desenhadas, faces rosadas, lábios carnudos e sensuais, que tinha casado por procuração com o obtuso chefe de posto há já alguns anos, quando este cansado da sua vida de solteirão e do cheiro nauseabundo a catinga das pretas com que dormia, resolveu por um anúncio num jornal da metrópole para procurar noiva. Esta trintona bem apetrechada fisicamente que em Portugal tinha sido serviçal, num palacete de famílias abastadas no Porto, não só fazia as delícias libidinosas dos poucos solteirões da terra, como não enjeitava os piropos soezes de alguns camionistas “rosqueiros”, que ali paravam na única estação de serviço da Shell para reabastecer ou para comer um frango de churrasco na explanada do único e manhoso restaurante da vila. Madalena era uma moça cobiçada e desejada por todos, exibia-se sensual e provocativamente com as suas curtíssimas e justas minissaias que lhe realçavam as formas, pondo o sexo oposto em polvorosa, alimentando-lhes os apetites e fantasias sexuais e acicatando-lhes a imaginação de com ela poderem passar algumas horas de prazer. A tarde enrolava-se dolentemente nas penumbras da noite, e sobre os passeios gastos corriam apressadamente em direcção ás suas casas, as últimas pessoas retidas nas suas quintas situadas nos limítrofes da vila. Era o fim de uma tarde útil e quase antológica, na quietude bucólica da paisagem africana. No pequeno hospital situado na colina sobranceira ao lugarejo, um enfermo lembrou-se repentinamente das vibrações antigas de um domingo de cristal e... e gemeu arfando de dor em convulsões espasmódicas. Uma andorinha poisou nos fios telefónicos que atravessavam a vila, depois outra e mais outra, aconchegaram-se, sacudiram as suas asas molhadas e aquietaram-se. O frade Franciscano da missão católica ensaiava uma novena ajoelhado num banco mais velho do que ele carcomido pelo “Salalé”, na velha igreja erigida pelos deportados portugueses, ali chegados há mais de 200 anos, mas já nesta altura parcialmente destruída pela sua luta inglória contra os tempos e séculos, que inexoravelmente nela deixaram as suas marcas. O chefe da estação olhou o sempre atrasado relógio dependurado sobre a plataforma bem varrida da gare e com uma voz fanhosa encetou um monólogo incongruente por entre os dentes podres e negros do tabaco:......- Deve faltar pouco.....Nesse momento exacto o negro comboio começou a desenhar-se no horizonte, e aos poucos foi galgando a extensa planície, atroando os ares com o seu apito estridente. O gado imobilizou-se dentro das suas cercas, e receosos continuaram a ruminar na erva verdejante e tenra. As feições rugosas que mais pareciam ter sido esculpidas a cinzel, iluminavam-se progressivamente á medida que o comboio se aproximava da mesma, e armado da sua velha bandeirola vermelha, aguardou a passagem da composição que deslizava célere sem se deter sobre os carris prateados. O velho chefe da estação com um rictus de frustração estampado no rosto, acabrunhado e entristecido baixou a sua bandeira vermelha desbotada, de cabo nodoso e ensebado pelos anos de uso, e com passos trôpegos encaminhou-se para dentro da gare. Este chefe de estação á beira da reforma há longos anos que vem alimentando a esperança que alguém ali desça, e nessa expectativa que semanalmente o defrauda, vai vivendo feliz, se bem que essa felicidade seja efémera, pois apenas dura até o comboio desaparecer por entre os matagais que circundam a vila. No entanto, o comboio ignorando o problema deste pobre homem desfila arrogante e indiferente deixando apenas como sinal da sua passagem, rolos de fumo negro, provenientes da velha e arcaica caldeira desta locomotiva Inglesa importada para África no princípio do século. Nas faces descoloridas e engelhadas do chefe, único empregado desta estação, as lágrimas começaram a correr rolando silenciosamente para o chão bem varrido da gare, e de novo num murmúrio comovido e embargado pelo desapontamento ele dizia:...... Será para a próxima....Na cadeia sem sol de paredes frias de onde escorria uma humidade viscosa, peganhenta e bafienta, não impedia contudo que o negro preso dois dias antes por tentativa de roubo e abate de um bovino, pertencente a um fazendeiro abastado da região, continuasse a esculpir um doloroso Cristo num bocado de madeira, arrancado para esse efeito ao único banco existente na cela. A lavadeira negra e grávida, suada pelo esforço de carregar á cabeça desde o ribeiro mais próximo uma enorme bilha de água, bufava e praguejava pelo esforço despendido na longa caminhada feita através da acidentada, tortuosa e poeirenta picada. A sua face luzidiamente perlada de bagas de suor, que lhe escorriam copiosamente pelo rego dos enormes seios descaídos como dois sacos de café, poisou a bilha á entrada da vila, apertou a manta do filho que carregava ás costas e humedeceu os seus grossos e gretados lábios bebendo do enorme cântaro. O Administrador de Posto, autoridade máxima na região, que nunca na vida lhe tinha passado ascender a posição tão elevada, estava sentado na sua aristocrática cadeira de pau santo artisticamente trabalhada, e com gestos requintadamente estudados mas de uma originalidade duvidosa, conforme exigia agora o seu novo lugar, pegou preguiçosamente na sua caneta Parker comprada durante a sua última licença graciosa no “puto” e redigiu a capricho um ofício ao chefe da PIDE em Luanda a informa-lo das movimentações suspeitas de hipotéticos terroristas em missões de aliciamento das populações indígenas locais, mas, que tudo se encontrava calmo e inteiramente sobre o seu controle. Este chefe de posto com poderes quase que plenipotenciários, sentia-se quase como um Deus, com direito de vida ou de morte sobre os seus súbditos, que ele arbitrariamente quer como acusador, juiz e carrasco distribuía a justiça quer acusando, julgando ou punindo com chibatadas ou palmatoadas os prevaricadores, como de um senhor feudal se tratasse exigindo das populações obediência cega, total e absoluta. O filho irrequieto e pervertido do farmacêutico local, jogando a bola num baldio emporcalhado tinha apontado o terceiro golo da sua equipe. A mulata pretensiosa recém chegada da capital, para onde tinha ido trabalhar como cozinheira num restaurante típico há um par de anos, acabou por ser convencida por um empresário local que a desvirginou a trabalhar num cabaré como alternadeira, entrou remexendo as ancas e rebolando a bunda na loja do senhor Mendonça para comprar algumas velas óleo de palma e farinha de mandioca. Entretanto na rua principal da pequena vila, o Thunderbird descapotável de cor vermelha que feria a vista e ofuscava com o brilho dos seus cromados deslizavam vagarosamente sendo admirados e invejado por todos os que passavam. Esta obra de arte fruto da tecnologia americana era pertença de um roceiro cafrializado e embrutecido, mas afogado em notas de mil pelos lucros astronómicos do café, buzinava estridentemente, não porque houvesse tráfico, mas sim para assinalar a sua chegada ao burgo. O roceiro com a face descomposta pela cólera, blasfemava ruidosamente, lançando um chorrilho de impropérios no seu “pretoguês” vernáculo, contra o velho negro, que arquejante e descarnado pela fome, se arrastava lenta e penosamente, tentando controlar a sua também esquálida mula carregada de cana de açúcar, que assustada pela buzina do flamejante carrão tendia obstruir-lhe a passagem. A mulher do mestre da escola vindo á janela, da sua casa estilo colonial alertada pelo inusitado barulho da buzina, cumprimentou afável e cerimoniosamente a mulher do sapateiro. Mas coisa estranha e singular, estas duas matronas, odiavam-se e invejavam-se há longos anos, mas hipocritamente distribuíam mutuamente salamaleques sempre que se encontravam. A menina de “bem” mais bonita e pretendida da vila, filha do gerente bancário da única agência num raio de 500 kms, olhou-se nua ao espelho com deleite, e o seu narcisismo brilhou violentamente nos seus olhos sagazes, meigos e aveludados, ao descobrir-se pela primeira vez, que se estava a tornar uma mulher sedutora, sensual e voluptuosa. O velho cirurgião, parteiro, enfermeiro e pau para toda a obra, lavou uma vez mais as mãos ensanguentadas, e acabadas de dar á vida uma nova vida, numa bacia que outrora fora esmaltada. O sargento lateiro e resinoso em comando do pequeno destacamento militar, ali desterrado em comissão de serviço por um período de 2 anos, blasfemava contra a ditadura salazarista e guerra colonial, que coercivamente o retirou daquele jardim á beira mar plantado que era Portugal e o desterrou como prisioneiro para os confins do sertão africano, reconhecendo-se no cão sarnento que passava ferrando-lhe um tremendo pontapé. O cão ganiu dorido e afastou-se coxeando, e nos lábios finos, cínicos e arroxeados do sádico sargento, aflorou-se-lhe um sorriso de satisfação que o levou a trautear entre dentes uma canção da moda do António Calvário. Havia tédio, ódio, inveja, preguiça, adultério, volúpia, resignação, mas o ciclo da vida continuava inexorável, insensível e alheio a todos estes insignificantes pormenores. Entretanto naquele quarto da única pensão da vila, de paredes escritas, reposteiros debotados, lençóis sujos e enxovalhados, eles abstraídos de tudo o que os rodeava, continuavam a amar-se, penetrar-se e a desejarem-se feroz e animalescamente, como se aquele fosse o último dia das suas vidas, numa tentativa desesperada, de quem sabe?....Viver... Vilamoura 25-10-1996

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