terça-feira, 30 de setembro de 2014

FUNERAL (Conto)

Há dias no cumprimento de um dever cívico, Bíblico e Pombalino que é o de: “cuidar dos vivos e enterrar os mortos,” assisti e escutei com desusado interesse o sermão do padre católico da Igreja da Quarteira, durante a missa de corpo presente do pai de um amigo meu, que versou sobre as duas vertentes filosóficas da nossa vivência enquanto seres pensantes e mortais. O tema escolhido para o sermão divide o mundo e as pessoas em duas categorias, o que eu também há já longo tempo advogo. Tenho que admitir que é uma filosofia radical e controversa que me surpreendeu ter sido escolhida para um Réquiem, feito na presença de um corpo inerte, frio cuja alma o tinha abandonado há longo tempo. A sua alocução litúrgica contundente mas profundamente analítica e realista apenas veio confirmar a teoria que eu também defendo, de que nesta vida existem duas raças distintas, dois tipos de pessoas: Os vencidos e os vencedores, os fracos e os fortes, os mandatários e os mandantes, os que lideram e os seguidores, os que fazem as leis e os que as cumprem. Nas primeiras categorias e parafraseando o padre dizia ele: - A grande maioria pessoas apenas passam ao lado da vida de uma forma vegetativa, são os avaros, gananciosos, incultos, pessimistas que vivem a vida aos solavancos, sem princípios ou convicções, sempre na dependência de terceiros, sem objectivos definidos, queixando-se de tudo e de todos, julgando-se perseguidos pelo fatalismo ancestral, não têm esperança nem fé nas suas capacidades, vivem rastejando e bajulando quem os posso ajudar ou promover, tentando agradar a tudo e a todos, dizendo que o preto é branco apenas para não entrarem em rota de colisão com o padre, professor, família, patrão, presidente da Junta ou barbeiro. São pessoas materialistas que estão demasiado agarradas ao mundo e que muito dificilmente contemplam a morte como uma inevitabilidade da vida entrando facilmente em pânico só ao pensarem que esta lhes pode bater á porta. São seres humanos mesquinhos por natureza e do todo incapaz de um gesto de altruísmo, ou de uma atitude de solidariedade para com o próximo. Vivem num mundo autista, onde apenas ouvem o eco das suas próprias palavras. Desconfiam de tudo e de todos, suspeitam mesmo daqueles que lhes são mais chegados incluindo a própria sombra. Na segunda categoria temos uma minoria, que são todos aqueles que sendo cultos, letrados, mantém uma mente aberta para o mundo, vivem uma vida interessante, responsável, assumem riscos, emitem pareceres e opiniões, sugerem alternativas, são usualmente estas minorias que lideram as maiorias, que os guiam, educam, aconselham ao longo das suas vidas desinteressantes, cinzentas e rotineiras. Esta estirpe e linhagem de indivíduos, são pessoas determinadas, consistentes, polémicas, argumentativos, disciplinadas, com objectivos claros e precisos, são criativos, responsáveis, e gerem o seu próprio destino com autoridade e pulso de ferro, não deixando que o mesmo possa ser alterado ou influenciado por terceiros. Sabem o que queres, para onde vão e quando pretendem chegar ao seu destino pois o seu timing é perfeito. São geralmente agnósticos, laicos, profilácticos enfrentando a vida sem medos ou receios, com a espinha dorsal na vertical, gozando a vida diariamente em toda a sua plenitude. São pessoas preparadas para enfrentar a inevitabilidade de que a sua forma corpórea terá um dia o seu terminús. Em face disso, não adiam projectos, satisfazem todos os seus prazeres e caprichos, não se privando de usufruir da melhor qualidade de vida possível. Não são avaros nem forretas, por isso não se preocupam muito em aforrar dinheiro para quando forem velhos, pois não sabem se lá chegam. São pessoas imaginativas, bem formadas e com desapego á vida, por isso encaram e aceitam a morte como um facto inevitável de se estar vivo. São pessoas que nunca se venderam ou escravizaram ao mundo materialista e consumista que corrompe e manipula, são pessoas de carácter forte, íntegros e ímpios, nunca se submetem quer física ou mentalmente, e, desde o berço que foram preparados e treinados para serem reconhecidos e tratados pelo seu nome e não como números. São considerados, respeitados e temidos não só pelos seus pares mas também pelas comunidades onde se encontram inseridos. Penso que o padre terá razão ao considerar esta minoria uns predestinados, pois de acordo com a sua visão a preparação destas pessoas para a morte é feita ao longo da sua vida. Este desprendimento baseia-se na obra feita que usualmente deixam para a posterioridade, seja qual for a actividade a que se dediquem uma vez que apenas procuram a excelência como forma terminal de expressar a sua arte. De tal maneira a confrontação com a morte me tocou profundamente que fui levado a inquirir sobre preços de caixões a funerárias, afim de que no meu testamento possa fazer a dotação necessária para a aquisição do mesmo, sem ter que deixar as pessoas embaraçadas á última hora sem saberem onde ir buscar o dinheiro para o funeral, por outro lado penso ter o direito de decidir em que féretro quero ir deitado e o pinho não me agrada muito, prefiro o mogno. A morte não é mais do que a última etapa, um estágio de uma passagem mais ou menos efémera por uma selva que eufemista e pomposamente poderemos de chamar vida. Neste jogo do gato e rato onde o mais forte, mais poderoso, o mais rico, terão á partida, mais probabilidades de vencer essa maratona, prolongando a sua longevidade numa tentativa de enganar ou adiar a morte, mesmo que para isso tenham que pagar principescamente, o que acontece diariamente. É evidente não podemos ser todos pobres ou todos ricos, nem todos fortes nem todos fracos e o mesmo principio se aplica a todos os outros predicados, consequentemente o próprio sistema está estruturado e concebido para reconhecer essas diferenças, por isso temos, vivendas no Restelo ou na Quinta da Marinha, escolas particulares, clínicas privadas, casas de repouso de 5 estrelas, para que os ricos, famosos e poderosos que não se misturem com a plebe anónima que aufere salários mínimos ou reformas de miséria. Para estes existem bairros sociais, hospitais, anos de espera para intervenções cirúrgicas e finalmente uma cova no cemitério em vez de um jazigo de família. Quer queiramos ou não aceitar este facto, o certo é que, começamos a morrer logo que nascemos, quer sejamos, ateus, agnósticos, fervorosos muçulmanos, católicos budistas, taoistas, confucionistas, tamil ou de outra igreja evangélica qualquer. Igualmente morrem os cumpridores de leis, os anarcas, ricos, pobres, honestos e desonestos e nada nem ninguém lhes pode valer na hora da partida, independentemente dos seus predicados ou fortes convicções religiosas. Penso que todos os óvulos são fecundados e gerados em três tipos distintos de destinos, no primeiro podemos acabar num aborto, no segundo podemos chegar como nados-mortos e na terceira podemos ter a sorte de ter um parto normal e sobreviver. Eu não me submeto a nada nem a ninguém, não venero nem idolatro o que desconheço, não acredito em nada que não possa ver, sentir, cheirar ou apalpar, mas acredito na morte, porque já constatei da sua existência várias vezes. Lamento que por vezes a morte ceife vidas tão banal e gratuitamente, particularmente quando se trata de seres humanos de eleição cuja sua longevidade deveria ser prolongada ou ter um estatuto de vida eterna, devido ás suas constantes contribuições para a humanidade. Não quero contudo alongar-me numa dissertação filosófica quer sobre a vida ou morte e muito menos de quem deve ou não morrer, é um assunto que a mim não me compete decidir. No entanto gostaria nesta altura de realçar o facto de que pessoalmente até á presente data, procurei sempre na medida do possível ter equidade e não fazer julgamentos de valor sobre ninguém. A minha imparcialidade e sentido de justiça não me permitem ter dois pesos e duas medidas para aferir situações que imponham decisões que afectem a vida de terceiros directa ou indirectamente. A verdade e a mentira a felicidade e infelicidade a doçura e amargura, a calma e a revolta a vitoria e a derrota, a alegria e tristeza sempre tiveram a mesma cor, o mesmo cheiro, paladar e o mesmo travo doce ou amargo de boca consoante o momento que atravessamos de regozijo ou de tristeza. A vida é como uma caixa de Pandora, nunca sabemos o que vai sair lá de dentro, portanto o saber viver implica que tenhamos de estar sempre em estado de alerta se não queremos ser apanhados com as calças na mão como um amante que foge á pressa pela janela quando se apercebe da entrada do marido em casa. Vilamoura 12-10-1994

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