sábado, 28 de fevereiro de 2015

A AMNÉSIA ANGOLANA

A água do Bengo ainda alimentou o meu corpo durante algum tempo depois de ter saído de Angola em Outubro de 1975. Contudo a verdade era mais do que evidente, os angolanos não desejavam o meu regresso e portanto não me restou outra alternativa do que me consciencializar de que jamais voltaria á terra que me tinha visto nascer. Essa certeza foi corroendo lenta e dolorosamente as minhas entranhas enquanto a mente fazia um inventário de todo o meu património perdido e fruto de muitos anos de trabalho. Tracei um perfil para a minha vida o qual obedecia a alguns critérios. Tinha decidido que jamais viveria em Portugal, pois como não era funcionário publico, bancário ou empregado numa seguradora, nunca seria reintegrado em Portugal. Para onde quer que emigrasse teria de começar da estaca zero e num país cuja língua oficial não fosse o Português. O meu plano de vida foi concluído com sucesso e vivi afastado de Portugal durante mais 20 anos. Desde que os movimentos de libertação se concentraram em Luanda e o Almirante Vermelho pavimentou o caminho para a supremacia do MPLA em detrimento da FNLA e UNITA rapidamente me apercebi de que nunca mais haveria paz ou concórdia em Angola, pela forma como se digladiaram durante os meses que tiveram que coabitar em Luanda quando fizeram parte do Governo de Transição. Por outro lado, também intui de que não haveria a mais remota possibilidade de qualquer intenção pacífica ou de cooperação com os brancos, pois o MPLA com a ajuda do Poder Popular estava determinado amedrontar e escorraçar o maior número possível de brancos de Angola, começando pela Capital pois era o local onde a maior concentração de europeus existia ou colonos como eles de forma odiosa e depreciativa nos chamavam. Quando constatei que alguns brancos e mestiços com os quais estudei ou pratiquei desposto, apunhalaram pelas costas tal como “Brutos fez a Cesar no Fórum Romano”, atraiçoaram e denunciaram pessoas de quem eram amigos e com quem conviveram a vida inteira para caírem nas boas graças do MPLA, ainda mais desapontado fiquei. Estes novos nacionalistas oportunistas que para mostrarem serviço não tiveram o carácter nem a dignidade de preservar a sua independência politica, pensaram que tornando-se bufos assegurariam a sua permanência em Angola e a protecção do inimigo não tiveram o pejo ou a decência de metaforicamente se pintarem de negro para servirem os seus novos senhores. A grande maioria destes vendidos acabaram mais tarde por igualmente regressar a Portugal como retornados. Só tenho pena que quando reconhecidos e identificados, que não tenham sido apanhados e sofrido na pele a vergonha que os Franceses fizeram passar os colaboracionistas que pactuaram com os alemães durante a sua ocupação, fazendo-os desfilar pelas ruas de Paris com os cabelos rapados. Não tenho raiva ou ressentimento contra Angola ou Angolanos, mas faço tábua rasa ignorando tudo o que se passa nessa terra. Sobre esse período da minha vida, passei uma esponja que tudo apagou, como se tivesse tratado de uma amnésia que sofri quando em finais de Outubro de 1975, abandonei Angola em direcção a outras paragens. Não me interessa saber se todos os Angolanos são milionários, se vivem em palacetes e conduzem Rolls-Royces, se morrem às centenas famintos ou vítimas de disenteria, malária, cólera, febre-amarela, vermelha, verde, azul ás riscas ou preta ou ainda por falta de cuidados médicos. Não me preocupa se os Angolanos vivem em democracia ou ditadura, se os governantes são corruptos ou não, se a população come mandioca e peixe seco, lagosta, caviar ou carne de Kobe, se bebe D.Peringnon ou cerveja Cuca, se morrem nos hospitais, em clínicas privadas ou na cubata da lavra, se andam a pé, de burro, bicicleta, automóvel ou têm avião privado e se quando morrem vão para o cemitério, ou ficam abandonados no mato e são comidos por leões. Não me preocupa se as prisões estão cheias ou vazias, se fazem julgamentos no tribunal ou populares no meio do musseque, se a liberdade de imprensa existe ou não, se o povo come ou morre de fome. Se quando há eleições e continuam a votar no MPLA é porque gostam de ser governados por corruptos e portanto não se queixem. Se um dia o povo quiser fazer um 25 de Abril e os vossos governantes fugirem para Portugal, pois têm os ovinhos de ouro em vários cestos, nessa altura saberemos tratar-lhes da saúde. Consta-se que existem privilegiados pertencentes á elite governamental e militar que vão engordando que nem porcos á custa da corrupção. Se esses factos se confirmam e o povo sabe e nada faz, é um problema que diz exclusivamente respeito aos Angolanos pois cada um tem o governo que merece. Não pretendo ser juiz de nada nem de ninguém, e muito menos advogar causas perdidas. Quando olho para trás fico feliz por ter saído de angola pois se lá tenho ficado jamais me teria apercebido de todo o meu potencial que se mantinha por explorar. A falta de competitividade no mercado angolano permitia que qualquer pessoa tivesse sucesso mesmo que não tivesse as qualificações adequadas para a profissão que desempenhava. O que se passa em Angola não me interessa nem me diz respeito, nada me liga a esse país terceiro mundista, não sofro de saudosismos doentios nem de recordações, já esqueci o que me roubaram, e só tenho pena de não ter deixado granadas armadilhadas dentro dos meus bens, que tinham rodas, andavam no mar ou ficaram agarrados ao solo. Nunca me filiei em nenhum dos movimentos de libertação, pois ideologicamente pouco ou nada os diferenciava a não ser o ódio comum que tinham aos brancos, e de verem os colonialistas pelas costas o mais depressa possível para se apropriarem dos seus bens. África é um continente maioritariamente de negros, e Angola não era uma excepção. Muito embora tenha nacionalidade Portuguesa tenho vergonha de ter naturalidade angolana da qual não me orgulho e só lamento que conste da minha certidão de nascimento e passaporte, pois gente civilizada não comete massacres como os de 1961. Nem se matam uns aos outros como tenho visto em vídeos filmados nos musseques de Luanda quando o povo recorre á justiça popular para punir os ladrões ou violadores. Não perco um minuto da minha vida a pensar, falar ou recordar Angola, foi completamente incinerada do meu álbum de vivências e não pretendo associar-me a nada nem a ninguém que tenha a intenção de reviver esses tempos lá passados com viagens a Angola como um Senhor chamado António Campos anda a tentar realizar. Expulsei do meu baú de recordações Angola como se fosse um anátema e lamento constatar que passados 38 anos tanta gente continue a reviver diariamente pelo Facebook e outras páginas na internet como Sanzalangola, Kubata, Luandenses, Retorno a Angola, Kitanda, Retornados e Refugiados, com postagens e comentários dos bons momentos que lá viveram como se nada tivesse acontecido e ainda lá residissem. Quando os leio com alguma pena e tristeza, a forma melancólica como se expressam, noto que todos eles deliberadamente esqueceram quando de lá foram escorraçados apenas com a roupa que tinha no corpo, e que os Angolanos se apropriaram nacionalizando todos os seus bens. Na minha modesta quem não se sente não é filho de boa gente e eu jamais esquecerei a forma como fui tratado. Ninguém me pode condenar de ter passado uma certidão de óbito a esse país, que se perdeu na poeira da minha longa caminhada pela vida, e sobre a qual tal como um quisto incomodativo fiz a sua ablação em devido tempo. . 11-5-2014

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